quarta-feira, março 30, 2016

Contra o "jornalismo de matilha"*


Há que fazer escolhas nesta guerra em que o jornalismo anda tão mal ferido pelo que aí se vai publicando em seu nome

Vai-se assistindo cada vez mais ao fenómeno do chamado "jornalismo de matilha" (pack journalism) na sociedade portuguesa. Os acontecimentos seleccionados como notícias são alvo de uma cobertura maciça por parte dos vários e distintos meios de comunicação social. Os jornalistas, em bando (ou seja, em matilha...) juntam-se nos mesmos sítios, às mesmas horas e para os mesmos acontecimentos marcados pelas mesmas agendas oficiais, entrevistam as mesmas pessoas e destacam os mesmos assuntos. Sem espírito crítico, sem um olhar próprio, copiam-se uns aos outros e escolhem o mesmo ângulo das notícias. Não é mesmo raro que as combinem. "Vais puxar por onde? Qual é o lead por que optaste?", perguntam uns aos outros, seja na Assembleia da República onde terminou uma audiência parlamentar, seja no tribunal, a seguir a um julgamento, ou num qualquer ministério, após uma qualquer conferência de imprensa. 

É uma falsa concorrência esta. A principal preocupação é dar mais depressa e não de forma diferente. Aliás, torna-se mesmo difícil contrariar esse espírito de "matilha", face à frequente resistência e desconfiança por parte das chefias, nada sensíveis a qualquer sugestão de se dar relevo a uma perspectiva diferente da que os outros media escolheram e já difundiram antes. O resultado é um produto final idêntico e uniforme para consumo de leitores de jornais, telespectadores e ouvintes de rádio. 

Daí a prática frequente de "se copiarem" as versões de quem cabe noticiar os acontecimentos imediatamente ou em directo: a agência de notícias Lusa e as rádios e as televisões. 

Nesta "correria" imposta pelo imediatismo e pela tirania do tempo, não se perde apenas a originalidade e o espírito crítico. Vão-se atropelando as mais elementares regras éticas e deontológicas do jornalismo. Na pressa de se noticiar - e de se noticiar primeiro -, não se confirmam as informações recolhidas quantas vezes por-espírito-santo-de-orelha, não se aprofunda, não se ouvem todas as partes envolvidas. Todos os dias se divulgam notícias falsas ou incompletas que, com uma velocidade espantosa, ganham crédito e influenciam a opinião pública. Criam-se convicções baseadas em mentiras por via desta prática generalizada hoje na imprensa portuguesa. É uma dinâmica perigosa e gravíssima. Perigosa, porque os jornalistas, com o poder de assegurarem os direitos constitucionalmente consagrados de informar e de ser informado, tornam-se eles próprios instrumentos de interesses e de poderes estabelecidos. Grave, porque durante a correria, a "matilha" arrasta o bom nome das pessoas para a lama, não respeita a presunção da inocência e, sobretudo, não noticia a verdade. Diz-se que a verdade é relativa. Mas também se sabe - ou devia saber-se... - que o que um jornalista noticia é o que ele filtra através dos "óculos" com que cosntrói a realidade, como notava o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Existe, porém, um valor para lidar com essa subjectividade: a honestidade intelectual. Um jornalismo sério e honesto distingue a informação da propaganda e da contra-informação, respeita o direito ao bom nome e à reserva da vida privada alheia, não toma partido e ouve sempre as partes em causa (e em pé de igualdade, que só o exercício permanente da equidistância o permite).

É sem dúvida um exercício difícil lutar contra a tirania do tempo nestes tempos dominados pela velocidade com que circula a informação. Mas há que fazer escolhas nesta guerra em que o jornalismo anda tão mal ferido pelo que aí se vai publicando em seu nome: ou se sobrevaloriza o sensacionalismo e a mentira, ou se opta por um jornalismo cívico e responsável. 


*Paula Torres de Carvalho, no Público, em 2010


terça-feira, março 29, 2016

Hoje é tarde *


Tenho tantas coisas para dizer
e não quero afogá-las no vinho
amanhã vou-me esquecer
devia ser agora que andam aqui
as gaivotas que cheiram
a mar e a telhas velhas

eu cheiro à noite de ontem
mas devia cheirar a hoje
devia ser agora que eu
devia cheirar a hoje
amanhã se calhar
nem cheiro
nem como
nem ando
devia ser hoje
que andam aqui os bêbados
que cheiram a futuro
toda a gente sabe que o futuro
é dos bêbados
os únicos que aguentam
não cheirarem a hoje
não dizerem hoje

já ninguém é quando quer
é quando pode
e quando se pode já não se é
porque não foi hoje
e é sempre tarde
a noite é tarde
o dia é tarde
eu sou tarde
tu chegaste tarde

Cláudia R. Sampaio 

sábado, março 19, 2016

Siza Vieira. “A reforma dá uma neura terrível” *

(Alex Stoddard)

Siza não se acomoda à ideia de parar de cultivar a paixão do desenho, a necessidade da arquitetura. Construiu importantes núcleos de habitação social na Europa e, tal como anunciará João Soares na próxima segunda-feira no Porto, esse será o tema do pavilhão de Portugal na Bienal de Veneza deste ano.

Esta é uma conversa feita a vários tempos. Começou a ser esboçada no Porto, teve um primeiro momento em Veneza, prosseguiu em Haia e foi concretizada em Berlim. São etapas de um percurso intenso ao qual Álvaro Siza se entregou por inteiro nos últimos meses, num regresso a alguns dos seus bairros mais emblemáticos construídos na Europa. Da Bouça, no Porto, a “Bonjour Tristesse”, em Berlim, acompanhámos a viagem, seguimos-lhe os passos, testemunhámos os encontros emocionados e emocionantes com os homens e as mulheres hoje protagonistas das casas desenhadas por alguém que tem como memória mais longínqua, enquanto criança, o desejo de ser bombeiro ou cantor de ópera. Bombeiro nunca foi, mas desenhou um belíssimo quartel em Santo Tirso. A ópera é uma sedução à qual sempre retorna. Nos intervalos da arquitetura, desenha. Nos intervalos do desenho, expressa-se como um dos maiores arquitetos do nosso tempo.

Muita gente tem de si a ideia de que sonha, respira e pensa a arquitetura vinte e quatro horas por dia. Como e quando é que descansa da arquitetura? 
Tenho de descansar, senão não resistia. Tenho problemas de família como qualquer pessoa. Tenho relações com amigos. Mas uma coisa que me dá repouso são outras atividades que estão relacionadas, como o desenho, a escultura. Não sou alguém que viva só para a arquitetura.

O desenho tem uma função regeneradora? 
Sim. É libertador. Desinibe. Cria umas bolsas de liberdade numa atividade que é muito condicionada. Também o uso como parte da prática arquitetónica, mas de forma independente.

Qual é a fronteira entre o desenho como ferramenta e como entretenimento? 
Numa das situações há alguém que nos paga para desenhar. Na outra é livre. Há alguns arquitetos, como Luis Barragán, que uma parte do seu modus vivendi vinha de construir para vender. Não é o normal.

No seu processo de fazer arquitetura, o desenho é um meio para desfazer dúvidas? 
Sim, é um utensílio de trabalho, como é o computador, de uma forma diferente, mas que não dispensa a atividade do desenho livre, que nem toda a gente utiliza. Para mim é indispensável como instrumento de trabalho. A expressão de um caminho através do esquisso é uma coisa rapidíssima.

Como parte para um projeto? Tem a mesma angústia do escritor perante a folha em branco?
Quando aparece um problema novo é preciso arrancar com novas ideias. Na maneira como trabalho ponho logo hipóteses. Umas mesmo para deitar fora, quase disparatadas, mas é uma maneira de abrir o leque de consideração daquele problema. É uma maneira de evitar o prefabricado. O desenho, o esquisso, permite muito rapidamente dar um giro pelas hipóteses que existem para resolver o problema, de uma forma ainda não sólida. Outros aspetos têm de ser amadurecidos, como de programa, de relação com quem promove o projeto, de estudo, de análise. Pode chamar-se a tudo isto angústia, embora seja um pouco exagerado, porque sabemos que vamos resolver o problema, melhor ou pior. Assim como o escritor sabe que vai escrever o livro. A angústia é um pouco romancear a situação. Não é um bloqueio. Será antes a procura.

Tem 82 anos. Nunca lhe passou pela cabeça colocar um ponto final na carreira?
Não há nada pior do que a reforma. Isso dá uma neura terrível. Depois não se sabe o que fazer. Veem-se algumas pessoas da minha idade muito aborrecidas num jardim a ler o jornal ou a jogar às cartas. Não é vida. Nunca me passou pela cabeça. Só se um dia não puder, por doença. Voluntariamente, não tomarei essa decisão para ter uma vida sossegada porque não dá sossego. Trabalhar é ter atividade. É estar vivo. Há uma tristeza na velhice que encontro ligada a essa quebra de atividade. De momento ainda tenho uns restos de força para responder à exigência que ponho no processo do projeto, que é muito cansativo, sujeito a dificuldades grandes, frustrações, mas ainda assim prefiro isso.

Haverá milhares de definições de arquitetura. Qual é a sua?
Ui… Essa é uma pergunta a que não sei responder. Há muitas arquiteturas. A primeira coisa é que arquitetura é o que não é só construção. Há uma resposta material que pode ser eficaz desse ponto de vista, mas a arquitetura na minha perspetiva vai para lá do material. Há uma parte espiritual, se quiser, que não se satisfaz só com a construção. Nas cidades, construção vê-se muita. Arquitetura, não se vê tanta. Depende também da época. A arquitetura ultrapassa a simples resposta em termos materiais e de conforto material. E, sobretudo, cumpre a sua função maior quando não é uma atividade individual.

É conhecido o seu gosto pela escultura e é impossível não recordar que por vezes há quem o veja como uma espécie de Bernini, que fez arquitetura que era escultura...
Quem o fizer é um exagerado sem remédio...

Não é raro dizer-se que algumas obras suas são como esculturas...
Não concordo muito com isso. Os aspetos escultóricos têm evidentemente lugar na arquitetura, junto com muitas outras considerações, como uma que é inultrapassável, que é de serviço. Há muita gente que considera que a arquitetura não é uma arte por a arte se referir a qualquer coisa que não tem utilidade, não tem função. Não estou de acordo. Até porque a arte, qualquer forma de arte, tem utilidade. Embora seja um conceito de utilidade diferente. Quando o Miguel Ângelo põe em Florença a famosa estátua de David e vem a população toda desfilar e admirar a obra, também havia ali a função de congregar a admiração e o júbilo de uma população inteira. Claro que Miguel Ângelo não terá pensado fazê-lo para isso, mas o que concretamente fez estava referido a uma cidade e a uma sociedade. O artista no fundo está a ser sensível ao tempo em que está a produzir e está a responder a isso.

Escultura e arquitetura podem ser mundos paralelos, próximos, mas são mundos diferentes?
Sim, sim. Quando trabalho em arquitetura, não estou a pensar em fazer uma escultura ou só umas formas.

Seria má arquitetura?
Acho que sim. Já que fala do Bernini, há um texto em que ele diz que a grande tarefa do arquiteto é transformar em belos os locais que não são. Refere isto, se não estou enganado, quando projeta uma escada maravilhosa num canto do Vaticano sem nenhum interesse, feio. Fá-lo com o objetivo de tornar aquele espaço belo, mas não é só isso. É com o objetivo de criar uma boa ligação entre dois pisos. A beleza é a função maior. Não há beleza que não contenha o resto.

Vamos então a algo próximo de tudo isso. Conta-se que Brunelleschi, quando afetado por uma doença, se vê obrigado a voltar a Florença, onde regressa com ideias tão antigas e esquecidas que se tornavam novas, como as questões da ordem, regularidade, simetria, proporção. São palavras que nunca deixam de fazer parte do vocabulário da arquitetura? Mesmo hoje?
Aí, a noção que tenho do que conheço desse aspeto é muito política. Havia um Papa que gostava do Brunelleschi, e quando ele saía entrava outro que gostava do Borromini. Na atividade há muita coisa que depende por vezes de uma pessoa outra. Agora, esses conceitos são universais, intemporais que, pela pressão, ou pela influência do contexto, do momento, da evolução do pensamento, não só na arquitetura, mas na literatura, na música, no cinema, os acabam por diferir. Portanto, a resposta também difere e surge como mais capaz para ser sensível ao momento, ou ao tempo. Este ou aquele. Até há quem, falando do Bernini e do Borromini, considere um revolucionário, o outro passadista. Ou vice-versa. Eram dois grandes arquitetos com conceitos muito fortes. Quando existe uma afirmação do moderno muito afetada por mudanças profundas, históricas, considera-se que agora tem de surgir, ou surgiu já, o homem moderno, inteiramente novo, a cidade nova. O Corbusier faz o plano em que arrasa Paris e só deixa três ou quatro monumentos porque era a cidade nova, uma ideia que rapidamente ganhou outra densidade e outras vias diferentes. Há um escrito do Bruno Zevi, um arquiteto e historiador italiano, um dos grandes críticos e autor de uma famosa história da arquitetura moderna, em que liga a simetria à homossexualidade. O que se estava a construir entre pensadores e arquitetos passava por um repúdio da simetria. Mas nunca desapareceu. Usa-se ou não. Tem que ver com muita coisa. Não pode ser um propósito. Uma receita. Quando passa a ser uma receita não dura muito tempo. Esse ou qualquer outro conceito.

A originalidade é uma busca permanente?
Essa é uma ideia que se mantém pela história fora. Porém, não se consegue ser original se se quer ser original fora do que acontece. Quem começar um trabalho a dizer que aquilo tem de ser original não vai lá das pernas. A originalidade passa também pelo que é a continuidade histórica, a história. Com cíclicas mudanças. Acredito que há uma continuidade na evolução da arquitetura. No fundo, nada é cem por cento original. Trabalha-se sempre renovando a partir do que está já feito. E são também fatores externos à própria conceção que provocam maior ou menor novidade. Veja o que foi, no fim do século XIX, o aparecimento do ferro, ou do betão. Construía-se só em pedra e tijolo. Aparece o ferro e é um fator externo ao pensamento sobre a arquitetura. É uma espécie de estímulo que vem e é muito transformador. Provoca uma nova abordagem em relação à qual há necessidade de uma modificação na expressão formal.

Apesar dessa continuidade, vão surgindo novas tendências. Ainda tem a preocupação de perceber o que de novo aparece no mundo da arquitetura?
Nem é uma preocupação. É uma natural atenção a isso, feita com maior ou menor eficácia ou competência. Quem deixa de estar sensível ao que se passa está acabado.

Quando aguardava o voo para Berlim leu no aeroporto um trabalho publicado no “El País” intitulado “As principais razões dos grandes arquitetos”, escrito a propósito do lançamento de um livro de recolha dos discursos de aceitação do Prémio Pritzker. Uma das citações é de Rafael Moneo, que denuncia o perigo de se acreditar “que a arquitetura é apenas o reflexo da cultura de um momento”. Partilha deste receio?
Aí também há diferentes momentos e opiniões. Com o futurismo havia a ideia de que cada geração devia construir a sua cidade. Construía-se para poucos anos. Vinha outra geração e fazia outra coisa. Era a ideia-base do movimento. Por outro lado, por razões económicas, de não condicionar definitivamente o mercado especulativo, estabeleceu-se que particularmente a habitação social seria para durar 20 anos. Há a outra ideia muito mais clássica e ligada à qualidade, de que a arquitetura é para durar. É uma reação oposta. Partilho mais desta opinião de que a arquitetura é para durar.

Como cinéfilo que sempre foi, como vê a frequente associação entre arquitetura e cinema?
Bastantes realizadores estudaram ou interessaram-se muito por arquitetura. A começar por Antonioni, Losey, e outros. Manoel de Oliveira, não sendo arquiteto, tinha uma grande ligação à arquitetura. Não é por acaso que vai buscar um muito bom arquiteto, José Porto, para fazer a casa na Vilarinha, onde viveu tantos anos. É um dos melhores arquitetos da altura. Não limito isso ao cinema. Há muita afinidade entre a linguagem e a expressão do cinema, da pintura, da escultura, da música, com a arquitetura. É a mesma família. É a arte, mesmo se há a ideia de que a arquitetura não é arte. Há muita coisa em comum. No cinema, por exemplo, nota-se muito como a câmara realiza o percurso intencionalmente, para determinados efeitos. Faz o grande plano e depois há uma fuga. Há um ritmo na sucessão das imagens. Na mesa de montagem é-lhe dado o sentido final. Isso existe na arquitetura. A maneira como se percorre, se usa um edifício, como se chega ao que é um átrio, um salão, um quarto de dormir, e a maneira como estão interligados, fazendo um todo na casa, tem a ver com esse percurso cinematográfico. Está relacionado com o ritmo a que os episódios se sucedem no espaço. Na música temos o ritmo, as mudanças de tom, que são meios usados também pela arquitetura para obter determinado efeito e constituir um todo com sentido. Ligado à função, mas não apenas.

Quais são nessas áreas os criadores que mais o inquietam?
Olhe, lembro-me do Visconti em “Morte em Veneza”, quando aparece aquela personagem, julgo ser o protagonista, a chegar ao hotel onde está a família do rapaz. Vê-se aquele travelling de cortar a respiração. Chega. Penetra naquele espaço e depois vê a família. Dá logo a nota de ambiente e drama por trás de tudo aquilo. Há muitos outros. A maneira como termina “As Luzes na Cidade”, quando Chaplin desaparece. Há aí essa similitude ou associações que se podem fazer de imediato. Na poesia, a maneira como se conta um estado de alma passa pelo ritmo, quer do ponto de vista do som quer da leitura. Também há a poesia que tem uma componente de grafismo, de distribuição das frases nas folhas de papel.

Vargas Llosa dizia há dias numa entrevista que o grande risco de um escritor depois de receber o Prémio Nobel é começar a sentir-se uma estátua que, como tal, perde a espontaneidade e não quer correr riscos. Repete-se...
Por acaso li essa entrevista.

Isso aplica-se a um Pritzker?
Não. Se fosse assim era de fugir dos prémios a correr. Num prémio há muito de circunstancial.

Não há o risco de, após o Prémio, quem encomenda estar sempre à espera de algo genial?
Eventualmente pode acontecer, mas temos de ligar à terra. Isso não é maneira de começar o projeto. Essa procura pode fazer-se, mas uma pessoa pode por inteiro demarcar-se sem ser agressiva em relação ao cliente. Há todo um processo em que dono da obra e arquiteto têm de se entender. O dono da obra é o primeiro arquiteto. Se ele não quer qualidade e se tem ideias desse tipo em relação ao que quer, não se vai lá. Há clientes com ideias muito próprias para uma casa, por exemplo, e isso corresponde a um sonho, ou a uma necessidade familiar. Aí há um processo autêntico de participação. Se é para fazer um prédio de rendimentos, muitos só pensam que seja uma coisa atrativa comercialmente.

Procuram um nome e comercializam esse nome?
Quantas vezes, se o nome se deixar comercializar. Se se procura manter a integridade num trabalho, pode haver desencontros. O cliente pode ter uma ideia do que é a obra espetacular, ou pode querer uma obra limitada enquanto desempenho autónomo na cidade. Há muita tendência para fazer de uma casa — que é uma célula de habitação — um palácio ou um monumento. A não ser em circunstâncias especialíssimas, está condenado ao fracasso.

Em que circunstâncias acontecem as exceções?
Há momentos históricos que ultrapassam o arquiteto e o promotor, e podem levar a que uma obra se torne ícone, para usar uma palavra que agora se usa muito. Lembro-me da Villa Savoye, de Le Corbusier, que aparece num momento em que há uma convicção grande por parte de alguns arquitetos e pensadores, de que chegou o momento de um mundo novo. Há transformações sociais provocadas por isso. Há acontecimentos da época, ou que já estavam latentes, que vão amadurecendo e então aparece uma obra excecional porque sintetiza toda essa ânsia coletiva de mudança. Aí já não é propriamente a importância do programa enquanto parte da cidade, mas é o momento. Também é curioso que a Villa Savoye nunca foi habitada. Ficou vazia e assim continua.

Enquadra-se nessa função icónica a famosa Casa da Cascata, de Frank Lloyd Wright?
Sim. É uma casa envolvida num certo dramatismo devido às relações entre o casal dono da obra. Mas é também um momento de encontro com o que estava em construção na sociedade americana e a grande personalidade do cliente, e um arquiteto também com uma convicção muito grande. São momentos suficientemente densos para produzirem obras de exceção.

Ao longo desta conversa já evoquei Bernini, Brunellechi, Lloyd Wright e Corbusier, mas podia citar Gropius ou Alvar Aalto. Não o fiz para mostrar erudição, mas para chegar ao momento de lhe perguntar se são referências para si. O que é que lhe interessa do legado destes homens?
Sim, são encontros em momentos especiais que tornam de uma grande pertinência esses encontros. Por exemplo o Alvar Aalto, que é uma das figuras a quem me associam, ou que constituem as referências com que trabalhei. No meu tempo, quando se estudava, arranjava-se com os amigos e os professores uma ou duas referências. Na Escola do Porto era o Corbusier, praticamente, e a luta pelo moderno. Havia pouca informação. Ao mesmo tempo havia em alguns sectores um repúdio dessa arquitetura que estava a nascer, muitas vezes relacionada com o comunismo. Com a relativa, mas significativa abertura que há depois do fim da II Guerra Mundial, o regime português também teve de aceitar uma certa abertura. O ambiente nas escolas melhora. Depois dá luta, e grande. Começam a vir livros, revistas com outra intensidade. Havia o desejo de recomeçar. Há uma proliferação de livros de história, textos sobre o moderno. Aparecem muitíssimas revistas. Começa a chegar às escolas portuguesas o que se tinha passado nos países que tinham participado na guerra. O cinema italiano foi muito influente em geral, mas também na arquitetura. Aparece o neorrealismo italiano. Começa a difusão do que se fazia em relação à reconstrução, por exemplo em França, em Inglaterra. Há as mudanças nos EUA, que saiu como uma grande potência. Tudo isso implica que depois já não há uma ou duas referências. Há dez, cem. Isso hoje acontece muito mais cedo devido à internet.

Faz toda a diferença?
É completamente diferente. Então, quando aparece o Alvar Aalto, ele tem uma grande importância no sul da Europa, sobretudo em Portugal, Itália, Espanha, e Grécia.

Não é estranha essa influência de um arquiteto finlandês?
Não. Ele participou no CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna) e vem de um país de independência recente, periférico e pobre, como Portugal era. Na Finlândia, como em Portugal, era difícil a introdução do betão. Havia dificuldades de arranjar cimento e estava vivo um artesanato de grande qualidade. Tinha muito que ver como se olhava para estes países da periferia e como eles estavam um pouco marginalizados. O aparecimento do Alvar Aalto nos anos cinquenta caiu como pão na boca. Na época, o que havia de centros de cultura era Paris, Milão, Londres, depois dos EUA, com Chicago, onde aparecem os arranha-céus, o metropolitano elevado. De repente, há aquele exemplo de que afinal a periferia não era a pobreza criativa. Pelo contrário. Por isso ganhou uma importância muito grande e imediata.

O que representa para si este regressar aos bairros da Bouça, Giudecca (Veneza), Haia e Berlim — proporcionado pela realização da bienal de arquitetura em Veneza?
Satisfação. Fico sensibilizado com a ideia de ter como representação portuguesa a habitação social, um tema que está agora de novo na ordem do dia e em relação ao qual houve muito pouca atenção, até pela ideia de que a iniciativa privada resolveria tudo e não seria necessário os Estados estarem a gastar dinheiro com a habitação. Está provado que não é assim. Há um retorno, uma consciência de que muitos dos problemas sociais também são produto da deficiente disponibilidade de habitação acessível.

Que pontos de contacto podem ter estes quatros projetos que materializarão o Pavilhão de Portugal em Veneza, tal como o conceberam os curadores Nuno Grande e Roberto Cremascoli?
São em meios diferentes, pondo diferentes problemas e exigindo diferentes respostas. Mas, no fundo, o tema é o mesmo e está presente em todo o lado. Tornar acessível a condição boa ou aceitável de habitação a todos os sectores da sociedade.

Uma curiosa consequência desta opção para a Bienal passa pela conclusão do bairro na ilha da Giudecca, em Veneza…
Sim. Não que não houvesse pelo menos afirmada uma intenção de concluir. Houve interrupção de obra porque o empreiteiro faliu. Esta iniciativa deu um grande impulso.

A propósito da sua ida para escultura, disse que não teve necessidade de matar o pai. Que memória tem hoje dos seus pais?
O meu pai era engenheiro, um grande trabalhador. Tinha de ser naquele tempo, porque nós éramos cinco. Mesmo um engenheiro tinha um salário reduzido. Para conseguir manter a família dignamente tinha de dar aulas à noite na Escola Industrial Infante D. Henrique. Éramos uma família de classe média. Tínhamos empregada, mas isso era normal. Ganhavam muito pouco. Eu próprio, quando me casei, tinha empregada. E só ganhava quatro contos por mês. Tudo na vida era económico. Ir comer a um restaurante era um acontecimento. Como ir ao cinema. O meu pai era muito interessado pela cultura em geral. Havia os concertos, gostava muito de viagens. Era um homem com uma vida social intensa e com muita alegria de viver. Foi o diretor do jornal de Matosinhos, que era “O Pelicano”. Se não fossem as necessidades, ele deveria ser escritor.

O seu pai transmitiu-lhe várias apetências culturais?
Lembro-me de que as rádios horríveis que havia na época, quando transmitiam ópera o meu pai ficava a ouvir, ou ia à ópera no Porto. Lembro-me de virem grandes cantores italianos. Depois havia o Conservatório de Música, de que ele era sócio e a minha mãe também. Eu próprio ainda o frequentei.

A ópera ainda lhe interessa?
Ainda. Dizer-se que se gostava de ópera era ridículo. Era um gozo tremendo, porque era considerada uma manifestação menor. A ópera não tinha prestígio nenhum nos da minha geração. Quando eu dizia que gostava de ópera, gozavam. A música séria era a música sinfónica. Beethoven, talvez até Tchaikovsky. A partir daí parava. Para muitos dos que me gozavam, anos depois a ópera passou a ser uma coisa sublime, porque era democrática.

E a sua mãe?
Como se dizia então, era doméstica. Morreu poucos dias antes de fazer 101 anos. Era de uma dedicação enorme à família e aos filhos. Muito protetora. Mas também era uma pessoa alegre e participava nessas saídas à ópera ou ao cinema. A vida familiar era muito diferente do que é agora.

E acabou por ter uma irmã freira...
Sim, uma irmã freira. Está em Bragança.

Das muitas lendas que correm sobre si, há as que o apresentam como muito triste, misantropo, obcecado pelo trabalho, onde encontraria escape para dramas pessoais. Ri-se destas leituras, ou fica aborrecido?
Provocam-me riso. É evidente que tive acontecimentos na vida muito penosos e, por isso, períodos de grande tristeza. Mas no essencial não sou nada triste, como verá se perguntar a amigos meus. Reconheço que sou pouco comunicativo e exuberante. Não sou extrovertido. Tenho poucos amigos, mas são muito bons. A minha vida social é sobretudo com a família e com amigos. Não sou de ir a festas ou jantares de cerimónia. Quando tenho de ir é uma chatice. Sacrifico-me.

Tem um filho arquiteto. Apesar dos seus conselhos?
Nunca o incentivei, mas fui-lhe dizendo que aquela via não era grande caminho. Mas ele queria e não insisti. Não ia contrariar. Tem muito talento, mas em termos de trabalho está difícil. Está para todos. Tem umas três obras de muita qualidade, mas isso não basta. Também precisava de sair mais, viajar. Mas não sai. Está muito dentro de casa.

É muito diferente de si?
Ah, sim. Em termos de vida social não tem nada que ver comigo. Gosta de festas. Há gente que conheço há muito tempo e trato por você, mas a quem ele trata logo por tu. São hábitos diferentes. É uma diferença de atitude da nova geração.

Imagino que estará ansioso por ir fumar o seu cigarro. Nunca ninguém lhe falou dos malefícios do tabaco?
Não ouço outra coisa. Sobretudo dos meus filhos. Dizem que é uma loucura. Mas também já encontrei médicos a dizerem-me para não deixar de fumar, porque isso seria terrível. Com a idade que tenho, deixar de fumar... Há médicos que dizem que isso seria um choque terrível no organismo.

* Valdemar Cruz, hoje, no Expresso

segunda-feira, março 14, 2016

Rentes de Carvalho: “Somos um país de medricas, de gente subserviente” *

O Meças, psicopata, prisioneiro dos traumas da infância e de uma violência milenar para a qual não há palavras, cobarde com os fortes, prepotente com os fracos, é menos uma personagem do que um retrato de todos nós. Nós os portugueses, “tão original mistura de trafulhice e ingenuidade”, uma raça de gente que obceca o escritor José Rentes de Carvalho. Porque, apesar de ter saído de cá há mais de seis décadas, nunca deixou de se sentir profundamente português. Quase a fazer 86 anos, sobreviveu a um cancro que lhe dava apenas 10% de hipótese de continuar vivo, descobriu Deus, encontrou a paz de espírito que é aquilo a que chama felicidade e afirma: “Não me sinto velho. Sinto-me sem idade.” Além do novo romance, daqui a duas semanas vamos poder lê-lo semanalmente num jornal diário português.

Hoje é um autor cujo reconhecimento passa também pelas vendas. No entanto, há dez anos a maioria dos portugueses não o conhecia e o meio literário fazia questão de ignorar os seus romances e o seu sucesso na Holanda…

Acho que chegar aos 86 anos assim é uma sorte. Sou um homem de sorte. Tenho que ficar feliz com isso. Mas também é uma questão de trabalho…

Não se sente ressentido com o ostracismo a que foi votado em Portugal durante várias décadas? Afinal o seu primeiro livro, Montedor, saiu em 1968 e depois teve vários livros bestseller na Holanda, mas cá ninguém o publicava.

Não, ressentido não. É normal, eu não vivo cá e o meio é pequeno e para poucos. Mas custou-me quando me deparei com uma certa maldade, como no ano em que estive na feira do livro de Frankfurt. Tinha publicado na Holanda o Portugal, Um Guia para Amigos, que vendeu mais de 200 mil livros, esgotou dez edições. Então o meu editor holandês decidiu ir a Frankfurt levando apenas o meu livro. O stand da editora (a segunda mais importante da Holanda) estava coberto com fotos da minha cara e eu estava lá. Passaram ali escritores, editores e jornalistas portugueses que eu conhecia e nenhum deles me cumprimentou. Baixaram a cabeça ao passar. Isso magoou-me muito.

Na Holanda sempre recebi provas de apreço e tenho tido excelentes, para não dizer extraordinárias, tiragens, mas nunca recebi prémios. Em Portugal recebi três. Em 1940 um quando tinha dez anos, na primária, por ser o melhor da Escola Diogo de Macedo: um livro da Condessa de Ségur e uma caderneta da Caixa com 50 escudos. Em 2012 recebi o Prémio Associação Portuguesa de Escritores (APE) para a Escrita Biográfica, e em 2013 o Prémio APE para a Crónica. Como vê não tenho razão de queixa.

Num tempo em que se diz de qualquer livro que é uma “obra prima”, em que se usa o superlativo com total leviandade, como é que vamos falar de um escritor como o José Rentes de Carvalho sem usar palavras gastas?

Olhe, diga que não pisco o olho a mim próprio. Não me permito isso. Que não escrevo livros apressados como fazem os jovens escritores. Que trabalho muito porque escrever bem dá muito trabalho.

A cada novo livro a sua escrita está mais depurada, mais no osso. Sem palavras a mais, sem palha…

Não gosto de ludibriar o leitor com romances de 500 páginas das quais metade deveria ir para o lixo. Este livro agora, O Meças, na primeira versão tinha quase trezentas páginas. Mas no final só saíram 180. Mas isso dá muito trabalho. Encontrar a palavra certa. Aquela que não pode ser substituída. Escrever a frase do tamanho certo, sem coisas a mais nem a menos. Tirar os ditongos. Odeio ditongos, são a desgraça da língua portuguesa. Mas sobretudo encontrar a melodia interna do texto.

Este seu novo livro começa precisamente por dizer: “Alguém terá de lhe emprestar as palavras, porque as desconhece, mas se lhas tivessem ensinado seria incapaz de dizê-las.” Passamos a vida a arrastar sentimentos para os quais não temos palavras?

A maioria das pessoas vive com um vocabulário tão limitado. Mesmo que elas queiram ir mais ao fundo não têm palavras para se pensar e então não podem sair da superfície. Vivem de slogans. Isso é trágico. Porque depois resta-nos imitar, querer imitar os outros. Achamos que eles vivem noutro mundo. Mas não. Aquilo que separa as pessoas é o facto de umas terem palavras e outras não as terem.

É esse poder das palavras que faz a verdadeira comunicação e comunhão humana?

As palavras têm o poder de um toque, expressam o mais fundo de nós. Nenhuma imagem consegue isto. Mesmo quando era apaixonado por cinema nunca duvidei que a imagem fosse secundária porque só na palavra acontece a verdadeira comunicação entre duas pessoas. Triste daquele que nunca experimenta essa verdadeira comunicação, porque nunca se dá e nunca recebe.

Somos um povo sem palavras, por tantos séculos de miséria e analfabetismo?

Somos, e por isso queremos ter coisas. De preferência coisas caras que preencham esse vazio, que deem um sentido aparente ao caos interior. Por exemplo, na Holanda não há carros de luxo. Quem tem carros de luxo são os traficantes de droga e as prostitutas e os parolos. As pessoas normais têm um utilitário. Aqui essa necessidade de mostrar, de exibir, esse parolismo começa logo nos políticos. Ser político à portuguesa implica logo ter um carro de luxo. É uma coisa triste mas que depois só me dá vontade de rir.

Mas nas anotações finais do seu livro também reflete sobre as elites que continuam a querer o povo analfabeto…

Isto foi dito por um politico há uns tempos. Fiquei com tanta raiva. É a típica mentalidade das elites, sejam elas de direita ou de esquerda, que querem manter o povo estúpido. Houve um momento depois do 25 de abril em que pareceu possível que isso fosse mudar. Mas hoje as pessoas mais pobres não têm outra vez dinheiro para mandar educar os filhos. Porque isso não foi uma ideologia que criou raízes. Foi apenas uma consequência dos anos de caridade europeia para connosco. Porque o país não funciona em função das necessidades dos seus cidadãos. Permite a riqueza a uns quantos e os outros são descartáveis. E, infelizmente, os cidadãos não se revoltam, apenas resmungam…

Não sabemos conviver com a nossa maldade natural, a nossa perversidade, achamos sempre que somos os bons da fita?

Somos um país de medricas, de gente subserviente, assustada. Porque somos carinhosos e julgamos sempre que os outros sabem mais, têm mais. Um português abertamente arrogante é um sujeito que sai fora da norma. Talvez seja um medo psicanalítico do pai…

Olhe o José Socrates: é carismático, é mau, é estúpido. Como personagem romanesco é uma mina de ouro. Mas nenhum escritor pegou ainda nele. Nem os mais jovens. Eu faria dele um Rastignac como o de Balzac.

N’ O Meças, a psicopatia, a loucura, o medo são omnipresentes. O José Rentes mostra-se exímio na arte de nos fazer sentir assustados como se estivéssemos nós próprios a ser vítimas de um predador. É uma técnica dos anos em que trabalhou no cinema?

Não tanto. O que faço é escrever como predador e depois escrever como vítima. Ser os dois ao mesmo tempo. De resto o cinema já não me interessa. É como um amor acabado. Acho que não vou ao cinema há uns 20 anos. Aquilo é tudo feito por quem tem dinheiro e já não tem nada que ver com arte. São histórias da carochinha com muitas explosões e efeitos especiais.

Mas o cinema foi uma das suas grandes paixões. Nos anos 50, em Paris, conheceu François Truffaut, Claude Chabrol, viveu por dentro a Nouvelle Vague, conheceu belas atrizes, e mesmo o Gabriel Garcia Marquez, que descreve como uma pessoa “muito irritante”…

Eram os anos 50, ainda sem o folclore existencialista. Vivia-se o clima eufórico do fim da 2ª Guerra, a vertigem do prazer sem pílula anticoncecional, que causou muitas trapalhadas. Na verdade interessava-me mais observar do que participar. Eu era uma esponja. Queria aprender tudo. Sobretudo com as raparigas. Eu era pobre, baixo, feio, português, sem allure, mas ficava sempre com as raparigas mais bonitas. Esses encontros foram mais determinantes do que o convívio com as “estrelas”. Se escrever as minhas memórias ninguém acredita… Mas vivo fora de mim e tenho apenas a alegria de dar e um interesse verdadeiro em conhecer as outras pessoas.

No entanto escreve: “Certo é que me prefiro anónimo, e quando posso escolho a solidão, avesso que sou a exibir e a partilhar, sofrer dependências, prestar contas.” O José Rentes é como a personagem deste narrador?

Sim, sim, além da minha mulher não tenho intimidades que permitam a alguém ver-me por dentro

No final do livro reflete sobre a fragilidade das relações de amizade. Porque é que as relações de amizade, que nos parecem tão fortes, são afinal tão volúveis?

Nunca houve uma amizade que não me traísse. Damos aos outros a confiança de penetrar no mais fundo de nós. Temos a ilusão de que a relação está bem assente e depois vem qualquer coisa, tantas vezes uma coisa ridícula, um raio de luz que aponta para qualquer coisa que estava obscurecida e vem o desencanto, o desapontamento. E depois é o final. Sou incapaz de retroceder. Quando alguém me desaponta é o fim. Nos amores e nas amizades, quem me trai acabou.

Por ausência de lealdade?

Eu sou leal até ao sacrifício pessoal. Mas ai de quem eu descubra a falsidade, perco a cabeça. Acho que se fosse menos civilizado, como Meças, seria capaz de matar as pessoas que me traem… sou capaz de grandes fúrias.

Mas essa postura não é sobranceria? Porque afinal todos nós somos falíveis?

Sim, somos falíveis, mas não temos que ser manhosos, baixos, tão capazes de usar as amizades em proveito próprio.

Como aconteceu na sua relação com o historiador António José Saraiva, que acabou em tribunal…

Fui aluno do António José Saraiva no liceu de Viana do Castelo. Era o único a quem ele dava “ótimo” nos textos. Reencontrei-o em Paris uns vinte anos depois, já nos anos 60. Eu já vivia na Holanda e ele tinha-se exilado em Paris e vivia numa situação muito precária. Então eu, que já estava a lecionar na Universidade de Amesterdão, achei que o Saraiva era um bom candidato à cátedra de Língua Portuguesa que entretanto tinha ficado vaga. O catedrático espanhol insistia que o Saraiva era um pulha mas eu e o meu colega holandês não lhe demos ouvidos. Ele chegou e logo na aula inaugural, em vez de fazer um trabalho original, limitou-se a ler uma coisa de uma conferência que já tinha feito em França. A partir daí foi rodeado de uma corte de maoistas fanáticos como ele e como a Teresa Rita Lopes [com quem António José Saraiva vivia] e começámos a entrar em choque. Tudo começou no dia em que íamos pela rua de Amesterdão e a Teresa Rita Lopes parou na montra de uma loja de casacos de peles e perguntou ao Saraiva se não lhe comprava um. Aí eu não me contive e gritei-lhe: “Casaco de peles uma grandessíssima merda. Então você não é comunista?” A partir daí ele começou a tentar que eu fosse expulso da Universidade. No dia depois do 25 de Abril um jornal holandês escreveu que eu tinha sido preso em Lisboa porque era da PIDE. Quando voltei para Amesterdão percebi que tinha sido o Saraiva que tinha inventado aquela história. Movi-lhe um processo em tribunal e ele foi condenado por difamação. A Universidade decidiu demiti-lo, mas uns dias antes ele já tinha vindo para Lisboa onde tinha arranjado um lugar de professor na Universidade Nova. Mas este foi apenas uma das vezes em que quis ajudar, em que fui sincero e leal e levei um pontapé. [A história, em pormenor, pode ser lida no blogue de José Rentes de Carvalho O Tempo Contado.]

Diz que com as mulheres é-lhe mais fácil relacionar-se…

As mulheres são mais carinhosas. Nos homens há sempre uma barreira animal que não consigo ultrapassar.

Isaura, a personagem feminina deste romance, é uma mulher fraca e fútil. Escreve: “Também a ela lhe faltam as palavras que a ajudem a ver claro, ter ideia das razões do seu destino, do que a magoa, torna insegura e fraca, impotente para se libertar da sua condição de fêmea.” Acha que as mulheres portuguesas são assim?

Sim, são tendencialmente submissas, obedientes. Só dentro de si mesmas têm um bocadinho de rebeldia, que raramente deixam escapar. Há muitas que até gostam de se gabar disso dizendo “este é o meu homem” ou “este é o meu patrão”. Isaura é assim, de uma submissão e de uma futilidade assustadora. O Correio da Manhã está sempre cheio de história de mulheres assim.

Depois dos anos de galã parisiense, foi para a Holanda e casou-se com duas irmãs…

O meu primeiro casamento foi um erro crasso do qual rapidamente me apercebi, mas entretanto já tinham nascido três filhas. A Loekie também era casada com um brasileiro e vivia no Brasil. Quando ela se separou do marido e regressou a Amesterdão fomos jantar e percebemos que tínhamos sido feitos um para o outro. Desde essa noite nunca mais nos separámos. O difícil foi comunicar isto à família. Mas no final todos acabaram por aceitar. Só aquela senhoras velhinhas lá em Estevais é que às vezes ainda me perguntam: “Então e como é que vai a outra?” Sem a Loekie, a minha mulher, eu não funcionava na sociedade. Ela tem a capacidade de evitar que eu ceda ao meu temperamento. Ela guia-me. É a única pessoa no mundo de quem eu aceito a opinião. Mas temos quase 60 anos de vida em comum.

Depois da vertigem de mundanidade em Paris foi-lhe fácil passar a ser um homem casado e quotidiano?

Ah, isso nunca fui! Às vezes sou de uma infantilidade sem cabimento… O que vale é que a minha mulher tem muita compreensão com o meu lado de miúdo.

Outro dos seus temas recorrentes é a impossibilidade de escaparmos às cadeias geracionais, ao atavismo e às consequências de uma miséria milenar. Neste novo livro esse é um tema central.

É um automatismo que é mais forte do que nós. Em Trás-os-Montes os camponeses pedem um subsídio e vão logo comprar o maior trator que houver. Maior que as terras que têm, que acarreta custos que eles depois não podem comportar. Mas compram-no e depois usam-no para ir ao café. O trator não é afinal uma libertação é só mais um mecanismo do atavismo. Quando envelhecem voltam à pá e à enxada e vão todos os dias para a terra plantar batatas que não precisam e couves que ninguém quer…

Outro dos nossos atavismos com o qual embirra é essa instituição nacional chamada “almoço”.

Um vez li num jornal um ministro português a reclamar que tinha muito trabalho e exclamava: nem almocei! Palavra de honra que até cortei essa notícia e a colei num caderno. Na Holanda só se faz uma refeição de faca e garfo por dia. Há uma paragem a meio do trabalho para comer duas fatias de pão e um copo de leite e já estão as bicicletas velozmente a pedalar de um lado para o outro. Em Portugal as pessoas têm que parar para almoçar porque acham que não aguentam… já viu a calma com que os portugueses almoçam? Mesmo quando emigram para países que não têm a tradição do almoço os portugueses insistem em almoçar…

Depois de viver em Portugal, nos Estados Unidos, no Brasil, em França, foi na Holanda que encontrou uma sociedade coincidente com aquilo em que acredita?

Sim. Se tivesse ficado no Brasil tinha morrido aos 40 anos. A estratificação social, as injustiças, a crueldade é muito pior do que aqui em Portugal. Na Holanda encontrei uma sociedade e uma liberdade próxima do meu ideal.

Perdeu aquilo que no seu livro chama “o grande medo”?

Sim, já perdi esse medo de existir. Esse medo é como uma sujidade da qual não nos libertamos senão com muito esforço. Há cerca de 10 anos tive um cancro nas glândulas salivares que já estava espalhado quando foi descoberto. O médico avisou-me de que tinha apenas 10% de chances de sobreviver e o mais provável era ficar inválido. A operação durou 14 horas. Acordei da anestesia a sorrir. Há dois anos fiz outra operação, desta vez às vértebras, que me dava também fortes probabilidades de ficar paraplégico. Não fiquei. Tive sorte. Tenho tido muita sorte.

Foi nessa altura que descobriu Deus?

Sempre fui agnóstico, direi agnóstico à portuguesa, oscilando entre o desinteresse e a suspeita da existência da divindade, mas o ver a morte de tão perto talvez tenha contribuído para me interrogar sobre as minhas certezas e incertezas. Não vá agora julgar que essa mudança foi causada por uma qualquer forma de gratidão devido a ter escapado a perigos, o que seria absurdo. Foi, sim, um processo muito íntimo, demorado, resultando na perceção de algo que me transcende. Sem lhe dar nome ou catalogar numa crença, vem-me daí uma paz que desconhecia e uma inesperada alegria de viver.

A dada altura n’ O Meças, o narrador reflete sobre o romance de Graham Greene, England Made Me. O José Rentes de Carvalho pode dizer “Portugal made me”?

Oh, sim, claro. Sem dúvida, “Portugal made me”. Posso gostar muito da Holanda, mas é nesta paisagem, nestes cheiros, na asfixia das montanhas transmontanas que encontro o meu Eu mais profundo. Mas também é por isso que me entristeço e enraiveço tantas vezes com Portugal. Houve uma altura da minha vida em que deixei de escrever em português e um dia queria encontrar uma palavra e não me lembrava. Apanhei um susto. Senti-me amputado. A partir daí, tudo o que escrevo é em português.

* Joana Emídio Marques, no Observador

domingo, março 13, 2016

Sérgio Sousa Pinto: "BE não descansará enquanto não ocupar lugar do PS" *

(Gonçalo Villaverde)

Sérgio Sousa Pinto recusa falar sobre António Costa, mas mantém a posição que o levou a sair do secretariado nacional do PS: insiste que a legitimidade do partido para formar governo depois da "derrota profunda" de outubro é débil. E não se conforma com a "rábula" de um partido que agora "parece condenado a gerir as suas duras realidades enquanto outros partidos de esquerda", ironiza, "arrancam admiráveis propostas para o país". Na sua primeira entrevista depois da demissão, o mais intrépido dos deputados socialistas avisa que o BE quer ocupar o lugar do PS, mas acredita que a legislatura será cumprida, mesmo que o governo venha a aplicar mais medidas de austeridade. "Ninguém quer arcar com a responsabilidade de entregar o país à direita", afirmou ao JN.

A sua demissão do secretariado nacional do PS depois das eleições legislativas foi considerada precipitada. A esta distância, admite que foi excesso de voluntarismo?
Não. Admito que não me senti confortável com a solução encontrada. Ao contrário da coligação de direita, do BE e do PCP, o PS saiu profundamente derrotado das eleições. Acho questionável que se tenha constituído uma solução política no vértice da qual está o PS.

Antes das eleições, defendeu que a vitória da direita seria "um atestado da nulidade política da esquerda socialista". Que consequência tirou desse atestado?
Não me mascarei de vencedor, embora sinta que me roubaram uma derrota honrada. Mas realmente a vitória da direita foi alcançada contra todas as probabilidades. Como é possível ter vencido ao fim de quatro anos de crueldade social?

Também antes das eleições, disse que era preciso "acabar com a ideia de que a impossibilidade de uma acordo os partidos de esquerda é responsabilidade do PS". Por que razão mudou de opinião?
Não mudei. O PS perdeu as eleições e foi desafiado pela extrema-esquerda, que já tinha derrubado governos do PS, a colaborar numa estratégia que arredasse do poder o partido que ganhou as eleições. Não é exatamente a mesma coisa. Quando no PS se estabeleceu a doutrina de que não há nenhuma razão para que o PS não mantenha um diálogo construtivo à esquerda, o que sempre se pretendeu dizer é que se o PS falhasse a maioria absoluta deveria conversar com os outros parceiros da esquerda. O que nunca se discutiu foi a possibilidade de o PS falhar a própria maioria relativa e formar um governo com o apoio dos partidos de esquerda, numa situação de enorme precariedade e de débil legitimidade.

O apoio dessa esquerda não lhe merece o benefício da dúvida?
Não só merece, como espero que este governo seja bem sucedido. É essencial para o país e para o PS. Mas as minhas reservas não perderam a justificação. O líder do partido mais votado deve ser primeiro-ministro.

Seria diferente se o PCP e o BE aceitassem integrar o Governo?
Sim, porque a situação seria mais clara e o governo era mais forte.

A reserva prende-se com o facto de o processo ter começado mal?
Começou mal, como é evidente. A solução encontrada assenta na ideia de que as diferentes forças de esquerda têm o suficiente em comum para proporcionar ao país uma estratégia nacional coerente. Tenho as maiores dúvidas a esse respeito, mas isso não me impede de dar uma contribuição para que as coisas corram o melhor possível. O país não pode correr o risco de os próximos anos serem de regressão ou de impasse histórico.

Que avaliação faz do desempenho do PCP e BE nestes seis meses?
O PCP tem adotado posições muito patrióticas ao lado do governo, designadamente neste Orçamento do Estado. O BE faz um sacrifício muito mais pequeno, porque é mais pragmático e desenvolto na sua atuação política. Não vai descansar enquanto não ocupar o lugar do PS no sistema partidário.

Há alguma proposta de alteração ao orçamento por parte dos partidos de esquerda em que não se reveja? 
As medidas do PCP e o BE não são deles - são acordadas com o PS. O preço do acordo é esse: eles apresentam propostas e o PS apoia.

Isso deixa o PS em que posição? 
O PS parece um partido condenado a gerir as suas duras realidades enquanto os outros partidos das esquerdas vão arrancando admiráveis propostas políticas que permitem ao país avançar na senda progressista. É uma grande rábula, porque estamos condicionados pelas condições de sobrevivência do governo que temos. A manutenção deste governo depende de proporcionar aos nossos amigos condições para apresentarem propostas que nós apoiamos e que eles rentabilizam politicamente como grandes avanços, de que eles próprios são os protagonistas. E assim se constitui uma solução política em que todos sentem que têm alguma coisa a ganhar com ela. Eu, que sou um político de esquerda, tenho aversão à demagogia, aos vendedores de banha da cobra, à retórica balofa, ao aventureirismo.

Está a classificar o atual governo?
Não. Estou a dizer que não aceito que certas soluções políticas alternativas ao PS, só porque se dizem à esquerda do PS, estejam forçosamente à esquerda do PS. Não acho que no histrionismo, por vezes pouco ponderado e pouco refletido, haja mais esquerda. O grande partido liderante da esquerda portuguesa chama-se PS.

António Costa é, do ponto de vista da solução governativa encontrada, uma desilusão?
Não vou fazer esse tipo de consideração desprimorosa.

Até onde pode resistir o governo nesta negociação simultânea com Bruxelas e os parceiros de esquerda? 
Até ao fim da legislatura. Ninguém quer arcar com a responsabilidade de entregar o país à direita, porque teria um preço elevado nas urnas.

A renegociação da dívida é o que mais o afasta dessa esquerda? 
A moeda única tem um impacto assimétrico nas diferentes economias, engendra vencedores e perdedores. Nós somos perdedores sistémicos. A crise do euro conduziu às crises das dívidas soberanas e a que países como Portugal estejam sobre-endividados. Temos poder para resolver esta situação? Não temos. Queremos uma experiência de tipo Syriza desafiando as instituições europeias? Eu não quero. Há sempre uns histriões que consideram que a alternativa é pôr em cima da mesa o debate da renegociação da dívida, como se isso dependesse de uma resolução nossa de reunirmos num sábio conclave e decidirmos que não pagamos a dívida. É um debate que conduz à desgraça nacional. Existe zero de abertura para esse debate. O que existe, nesse quadro, é comprometer a confiança que o país ainda tem no exterior, travar um combate suicidário em que vamos perder, pagar a dívida na mesma, mas com a desconfiança total dos nossos parceiros. Claro que também pode haver um incumprimento unilateral, se decidirmos que não pagamos a dívida. Em termos financeiros, seríamos uma espécie de estado pária e não sei que futuro teria Portugal.

Se sem renegociação da dívida não há possibilidade de crescimento, qual é então a alternativa?
Não existe abertura para tratar o problema da renegociação da dívida, o que não significa que o problema não seja uma questão da maior importância. Como é evidente, a dívida e os juros absorvem recursos que nos fazem muita falta para o investimento. Só que, neste momento, não existe no Conselho Europeu, abertura para isso. Queremos forçá-la? Para quê? Para repetirmos a obra do Syriza na Grécia, que hoje é um disciplinado aplicador das mais violentas deliberações da troika que acompanha o ajustamento grego?

O que falta testar na Europa para resolver o problema dos países do Sul, incluindo Portugal?
Portugal tem que reorientar a sua política europeia no sentido de contribuir para que a Europa dê passos em frente que permitam que se dote de um orçamento capaz de compensar os países que são vítimas do funcionamento da moeda única. Uma coisa semelhante ao que foram os fundos estruturais quando aderimos ao mercado comum. Só será possível num quadro de maior integração política, económica, orçamental. Mas o país também deve acompanhar, com capacidade crítica, no sentido da sua autonomia nacional e do seu interesse próprio, as diferentes iniciativas europeias de forma muito mais aguda e cautelosa do que no passado. Temos o dever de incorporar a aprendizagem da nossa experiência nos últimos anos, em que a solidariedade europeia em larga medida nos faltou.

Até onde é possível continuar a fingir que é possível resolver o problema da banca sem resgate?
Não diria que se anda a fingir. Existe a expectativa de que a situação da banca não continue a degradar-se. Se acontecer, e se se demonstrar que são necessárias medidas penosas para garantir que os compromissos europeus são cumpridos, essas medidas serão tomadas. Mesmo sendo um governo que se constituiu com a sua base política de apoio em torno de uma ideia vaga de rejeição e superação da austeridade. Não me admiraria nada que os impostos indiretos viessem a subir.

Esboroando as diferenças entre este Governo e o anterior?
Este governo não é igual ao anterior, já tomou medidas altamente diferenciadoras do anterior. Mas é verdade: quanto mais as diferenças são microscópicas, maior é a gritaria politico parlamentar. A regra costuma ser essa.

Que reflexão defende que se impõe no congresso do PS de junho?
O congresso deve servir para o PS lembrar ao país, e a si próprio, que tem sido com todas as suas dificuldades, insuficiências e desgraças a grande força de transformação e progresso em Portugal desde o 25 de Abril. A grande preocupação do PS, neste momento, deve ser preservar a sua identidade e reafirmar a sua força política liderante como grande partido da esquerda democrática. Um partido que não assenta nem aceita que está posicionado à direita dos outros partidos que se reclamam da esquerda. Mas que entende que o seu caminho, com uma componente muito forte liberal, para não dizer libertário, é o o único que verdadeiramente serve os grandes ideais que a esquerda historicamente prossegue. Há muitos aspetos no capitalismo que nos repugnam, mas nós não temos nada para contrapor e para substituir o modelo capitalista. Temos essa humildade perante a História. Não queremos substituir o capitalismo por qualquer experiência, porque todas as experiências já foram tentadas. Há muita esquerda que quer escaqueirar o capitalismo à pedrada e a canelada. Não sei o que fariam com isso e gostaria de não estar cá para ver. O capitalismo corrigido pela experiência social-democrata - sim, por nós, socialistas - é o modelo económico que permite criar riqueza e arrancar pessoas da pobreza. O resto são caminhos que não conduzem a lado nenhum, como a história se encarregou de demonstrar.

"Problema dos refugiados mostra o fracasso da Europa na sua dimensão de caricatura"

Apoiou Maria de Belém nas presidenciais, que teve um resultado pobre. Foi um erro o PS ter criado um candidato para correr contra Sampaio da Nóvoa?
Uma correção: não fui consultado, não concordei e não apoiei Maria de Belém. Anunciei, a dois dias das eleições, que ia votar nela. E expliquei porquê. A candidatura dela foi um erro, e a de Nóvoa também. Erros por deficiente condução do PS.

O PS deveria ter tido candidato? 
Um candidato forte, que disputasse a vitória. Mas não quero reabrir isso e remexer nas feridas do PS.

Venceu Marcelo Rebelo de Sousa e disse que fez um discurso na tomada de posse em que "todos portugueses podem rever-se". Foi o seu caso?
Gostei do discurso. Sou um dos tais portugueses que correspondeu à expectativa do primeiro-ministro.

Não poderia ter votado nele pelo facto de, juntamente com António Guterres, ter boicotado, em 1998, a sua proposta de despenalização do aborto?
A derrota da minha proposta foi mais responsabilidade do Eng. Guterres do que de Marcelo. O então líder do PS deu indicação de que o partido não tinha posição e iria votar contra. Fez uma avaliação profundamente errada de Portugal e do estado em que a sociedade se encontrava.

No plano simbólico, reconciliou-se com Guterres quando foi eleito para o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados?
Não tenho uma visão novelesca da política. Tenho grande estima pessoal pelo Eng. Guterres, que é um homem fora do comum. Sempre me considerei reconciliado.

O episódio da ex-ministra das Finanças Maria Luís Albuquerque, contratada pela empresa de gestão de dívida que lucrou com a venda de créditos do Banif, é um exemplo do que diz ser "imitações plastificadas" das grandes figuras?
Esse assunto deve ser e vai ser escrutinado na comissão de ética. Mas, independentemente do que será o ponto de vista estritamente jurídico, esse episodio é de total falta de juízo.

Descredibiliza a classe política?
O desprestígio resulta de fatores complexos. Um deles é a impotência da classe política, que já foi poderosa e hoje está condicionada, sendo incapaz de corresponder à expectativas que as pessoas legitimamente depositam nela. O enfraquecimento desse poder é o tema central do nosso tempo - e é a razão principal para o desprestígio. Depois, haverá outras razões menores, mas muito amplificadas, de políticos que dão maus exemplos, afetando os partidos todos.

A que distância está a Europa do projeto ideal inicial?
Vivi com perplexidade, angústia e profunda tristeza a alteração de natureza da construção europeia, em que a sua dimensão política, integracionista, federalista e idealista foi suplantada pela afirmação egoísta e contraditória dos interesses dos estados. Embora estejamos dentro da União Europeia, sentimos que voltou a prevalecer a velha lógica das relações de poder. Pensámos que essa etapa histórica estava largamente ultrapassada, e que o projeto europeu - essa ideia de uma construção política orientada para uma união cada vez mais estreita dos povos, essa ideia da Europa como comunidade de destino, e todos esses grandes princípios orientadores, que historicamente só são compreensíveis depois dos horrores das duas guerras mundiais - estavam aqui para ficar. E que a Comissão Europeia faria vingar o princípio da igualdade dos estados e faria com que prevalecesse sempre o interesse comum. De repente, tudo isso ruiu. Para quem acreditava no projeto europeu - e ainda acredita, mas com uma atitude mais crítica -, foi um grande desapontamento.

É autor da iniciativa parlamentar que repudiou a lei dinamarquesa de confisco dos bens a refugiados. O problema dos refugiados é a prova da falência desse ideal?
É já o fracasso na sua dimensão de caricatura. Como é possível que alguns dos países mais prósperos do mundo sejam tão avaros no acolhimento dos mais desesperados entre os desesperados, que são os refugiados de guerra? Como é que há países com PIB per capita extraordinários a permitirem-se espoliar os refugiados dos seus haveres para comparticiparem nos custos do seu próprio salvamento da guerra? É uma mercantilização de direitos fundamentais. Em Portugal, pela sua profundíssima cultura cristã e católica, semelhante indignidade nunca poderia ocorrer, mas diz muito do estado em que a está a Europa. Se decidir constituir-se como uma comunidade de interesses não vai ter um futuro tão duradouro nem tão interessante como poderia ter enquanto comunidade de valores.

sexta-feira, fevereiro 26, 2016

Psicopolítica, Byung-Chul Han

Tropecei neste livro algures no fim de semana, comprei-o ontem, terminei-o hoje. É pequenino. A leitura de Byung-Chul Han, coreano da moda, faz-me lembrar a leitura do Lipovetsky no início dos anos 90. Era impossível ler aquilo sem ficar com um prolongado "Wow" na cabeça. Ao quinto ou sexto livro, passa, ou vá lá, abranda. Mas enquanto dura, espicaça e estilhaça, o que já não é pouco.
Partindo menos de conceitos novos do que de uma síntese adaptada das teorias de velhos amigos da faculdade - Deleuze, Foucault, Bentham, Durkheim - este tipo coloca-nos sem piedade ao espelho e faz-nos morrer de vergonha. Ou, pelo menos, de pena por termos cedido e desistido.


O livro não é sarcástico, mas não consegui não o ler com auto-sarcasmo. Porque, sendo só uma espécie de sumário, é de uma clarividência avassaladora. Sobre como o regime neoliberal nos transformou em exploradores de nós próprios, transformando-nos "não em revolucionários, mas em depressivos"; sobre como nos deixámos nivelar por baixo em nome do que é suposto ser uma sociedade de informação objectiva, conformada e conformista; sobre como abdicámos da liberdade em nome da transparência e voluntariamente nos despimos e expomos, negando o que em nós havia de romântico, de "aversão à media e à normalidade" ; sobre como nos deixámos dominar por uma técnica de poder que "não é proibitiva, protectora ou repressiva, mas prospectiva, permissiva e projectiva"... Sobre como confundimos tudo, rigorosamente tudo e, nisso, eliminámos "o singular, o improvável, o repentino". O que, no fundo, nos faz andar.

E depois termina com uma espécie manual do idiota - que também não é novo, mas não faz mal - que é uma absoluta delícia ler.

"A violência do consenso reprime os idiotismos (...). O idiota é por essência o desligado, o desconectado, o desinformado. Habita um lado de fora impensável que escapa à comunicação e à conexão: O idiota dá voltas como uma rosa arrancada no remoinho dos homens decididos, dos homens em consenso. Habitantes e membros de uma conformidade enigmática.

(...) O idiota é um herege moderno. Heresia significa eleição. O herético é aquele que dispõe de uma eleição livre. Tem a coragem de desviar a ortodoxia. Liberta-se corajosamente da coação à conformidade. O idiota enquanto herege é uma figura de resistência contra a violência do consenso. Salva a magia do marginal. (...) O idiotismo opõe-se ao poder de dominação neoliberal, à comunicação e à vigilância totais. O idiota "não comunica". Porque comunica com o incomunicável. Recolhe-se assim no silêncio. O idiotismo constrói espaços livres de silêncio nos quais é possível dizer alguma coisa que mereça realmente ser dita. (...) O que distingue os idiotas não é a individualidade, ou a subjectividade, mas a singularidade".

Psicopolítica, Byung-Chul Han

segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Gente melancolicamente louca, Teresa Veiga


É um livro para ler entre livros, como são todos os livros de contos. E, apesar da mística que rodeia Teresa Veiga - há mistérios assim em Portugal, como este ou de Ana Teresa Pereira, vá lá compreender-se porquê -, nem todos os contos, onze, são muito bons. Mas alguns são maravilhosos.
Como o de Manuela, uma rapariga de 15 anos, "dividida em duas, que levava a sua dupla existência com a dissimulação de um adulto e a leviandade de uma criança persuadida de que se fechar os olhos ninguém a vê". A rapariga do "tipo solitário" a quem chamariam "excessiva, desconcertante, obcecada e manobradora", se lhes fosse dado conhecer os seus segredos. Tão simples, só sobre o estigma.

Ou o de Natasha-em-fuga escrito por Susana, espécie de jornalista que teima em "renunciar as ideias feitas e ver tudo com os olhos da alma, isto é, um olhar límpido, primordial", e a quem no fim de uma peça se pergunta: "Será que daqui a trinta anos ainda é capaz de escrever coisas como o beijo do sol e o sopro cálido do vento?" Acrescentaria à pergunta "a fornalha do sofrimento" e a dúvida sobre qual das duas é o conto, o que diz muito de quem escreve.

Ou ainda o de Isabela, a rapariga enfermeira e criada da mãe, "sufocada por vinte e sete anos de reclusão e cheia de fome de viver", que após a libertação primeiro se torna "numa heroína à medida dos tempos modernos, com o coração a bater entre as pernas" e a quem depois, com música e literatura, são dadas letais asas de Ícaro.

Só para referir três contos - e todos são sobre mulheres. E não há um único em que o título não faça todo o sentido. Melancolia e loucura, tudo junto.